quarta-feira, agosto 23, 2006

A verdade inquestionável do cão de porcelana

Ele era um poeta frustrado.
Tinha ambições muito elevadas de um dia ser melhor que o seu grande ídolo, aquele que se passeava por Lisboa de chapéu e óculos redondinhos falando a quatro vozes, tão marcantes, que à primeira vista se estranham mas facilmente depois se entranham.
O pseudo-poeta com ambições a PESSOA de quem vos falo ronda os 40 anos e insiste em andar de bigode apesar desse bigode já não ser do seu tempo. Creio que o deve ter, na esperança que esse lábio farfalhudo lhe traga a inspiração suficiente para acobreado pela homenagem, se sentar ao lado do Outro na brasileira.
A sua “bíblia” trá-la sempre consigo, amarela esfarrapada, a cheirar a mofo e com muitas lágrimas absorvidas pelas suas páginas. Essa “bíblia”, a edição de poemas mais que lidos do Outro, cheira a tristeza e a nostalgia, a felicidade e a esperança. O dia que a comprou numa feira de antiguidades e alfarrabistas algures (onde mais poderia ser) lá para os lados do Chiado, está registado na sua agenda que guarda com todo o carinho.
10 de Junho de 1973, o dia em que descobriu que não era a medicina que herdara de família que iria seguir. O dia em que descobriu que a sua vocação era de facto tratar do coração dos outros e faze-los viver, não com o estetoscópio e bisturi, mas sim com a tinta que poderia sair da sua caneta de estimação. E que estima ele tinha por ela... de tal forma que a guarda até hoje. Afinal não foi com ela que o primeiro verso nasceu?! Guarda-a, mesmo não escrevendo há anos, a ela e à sua sucessora em tudo igual à primeira, incluindo a forma como a tinta acabou sem hipótese de ser substituída.

Agora, com outra caneta nova, mais moderna e sem pretensões a substituir o que quer que seja apenas existindo para o que foi criada, ele percorre as ruas de Lisboa. Todos os dias segue os mesmos passos que o Outro seguiu um dia, visita os cafés que ele visitava. Fica horas na esplanada do Martinho a olhar para a praça majestosa e à espera que esta lhe traga um dia finalmente a Luz. Estes passos rotineiros só são interrompidos com as idas (elas de si já também algo rotineiras) a todas as editoras à procura que um dia alguém encontre nele o talento que ele próprio, por mais que queira não consegue ver.

O cãozinho de porcelana que a vizinha tem à janela, todos os dias o vê sair e voltar cada vez com a cara mais escondida e com os ombros mais descaídos que a anterior. Porque raio ele insiste em superar alguém que para ele é obviamente insuperável?! Porque raio ele não segue o seu caminho e não vai, como diz o Outro, para onde o vento o levar, sem se preocupar... até um cão de porcelana estático à janela da vizinha consegue ver isso, que raio...
ML

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